É com muito pesar que digo o óbvio: o Brasil é feminicida, porque o feminicídio é estrutural. E, em que pese alguma exceção, que se manifesta contra o extermínio de alguma mulher – especialmente a depender do status social dela – são raras as instituições que de fato agem cotidianamente para superação do padrão cultural de matar mulheres, e culpabilizá-las por sua morte. As mulheres que sobrevivem à violência no país têm que lidar com um processo profundo de estigmatização e culpabilização. As que sobrevivem têm que ver os assassinos, estupradores muitas vezes saindo pela porta da frente das cadeias sem cumprir suas penas.
Mulheres e crianças que sobrevivem e por venturam lutam para manterem sua sanidade (física e mental), convivem com uma verdadeira caça às “bruxas”, especialmente orquestrado por pessoas que mascaram sua misoginia se travestindo de pessoa de “boa” moral (uma versão contemporânea de fariseu), cujos atos persecutórios contra as mulheres e crianças violadas, e estupradas sistematicamente, se expressam no poder coercitivo, na atitude do julgamento moral da vítima, e por vezes na prática de querer obstacular o sistema de saúde e jurídico para garantir assistência digna e respostas às violências vividas diariamente.
Recentemente os feminicídios de Viviane Vieira do Amaral Arronezi(Rio de Janeiro), Ana Rita Tabosa Soares (Ceará), Thalia Ferraz(Santa Catarina), Anna Paula Porfírio dos Santos(Pernambuco), Kleane Ferreira do Nascimento (Paraíba) expressam até hoje a gravidade do problema para a sociedade brasileira. Elas não foram as únicas. Vocês podem fazer o exercício de busca e procurarem nos portais de notícias, e vão ter uma mostra dos feminicídios que alcançaram noticiabilidade. No entanto, há muitos outros que não chegam ao noticiário. Vocês podem ainda ler as matérias e observar no relato o padrão para os crimes. O padrão visível, infelizmente muitas vezes aceito socialmente, embora muitas pessoas não admitam. E ainda hoje as instituições e operadores de justiça culpabilizem as mulheres pela sua própria morte.
Ouvindo o podcast “Praia dos Ossos”, que faz uma reparação histórica à imagem da Ângela Diniz, chamou especialmente a atenção às estratégias, de defesa do assassino, de desconstrução da dignidade dela enquanto pessoa humana e mulher, reduzida a menos que nada e demonizada, com vistas à absolvição do algoz da Ângela. E passados tantos anos na sociedade brasileira, mesmo tendo ocorrido algumas transformações e muitas mulheres e raros homens lutarem tanto por uma cultura de paz e justiça, ainda, infelizmente, é sintomática nessa sociedade, a violação das mulheres, seja ela física ou simbólica.
Elas são ótimas para o trabalho forçado (análogo muitas vezes à escravidão, para a dupla ou tripla jornada de trabalho). Elas engordam muito o Produto Interno Bruto. Elas são amplamente aceitas e louvadas por serem mão de obra não remunerada nos lugares de culto – seja nos templos, terreiros, sinagogas, mosteiros… Elas ainda funcionam como bibelôs de luxo que alguns homens apresentam como amuleto de sua “masculinidade” potente e inquestionável. Elas servem e muito para procriar, e são uma peça chave, tão orgânica para uma sociedade que cultiva o padrão de matar essas mesmas mulheres. Seja ela quem for, o fato de ser mulher, infelizmente, ainda, a coloca numa situação de terrível vulnerabilidade. A mulher não é simplesmente uma vítima, ela é socialmente violada no seu direito de existir com plenitude.
Recentemente uma amiga foi chamada de louca numa rede social, por um homem, por ter postado uma crítica ao dogmatismo religioso. Eu o conhecia bem de longe, mas sabia o quanto ele era herdeiro da patrística(filosofia medieval). E penso que vocês devem lembrar do que aconteceu com as mulheres no período medieval, o assassinato massivo delas, aceito e justificado, pois eram tidas como “bruxas” ou “loucas” ou “desejáveis”, ou cientistas, ou acreditavam que tinham direito às suas próprias vidas, e as suas propriedades. A atitude misógina dele não me surpreendeu. É daqueles homens de “esquerda”(porque é meio chique auto intitular-se, soa algo como: sou um “intelectual”). A misoginia vai além da ideologia política ou crença religiosa. Pois bem, essa é uma das tantas atitudes que ferem o direito das mulheres à vida, a uma vida plena. Infelizmente o feminicídio estrutural faz com que os assassinos tenham assegurado a vida, a ter uma memória, uma história, a recompor uma família, seu dinheiro, seu status. As mulheres não. A vida delas é tirada, abreviada.
Há no Brasil milhares de órfãos do feminicídio. E não se iludam mulheres, quem diz te amar pode te matar sim. Em geral as vítimas de feminicídio têm em comum o fato de dizerem NÃO a um ciclo de violência.
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