Chegou dezembro, mas ainda em novembro gestores já colocaram luzes nas árvores, enfeitando a cidade. Deixando o clima mais natalino. Eu sei que o Natal aquece um pouco mais o coração da gente. Ou talvez inquiete mais nosso coração. Tento me apegar as coisas boas, a Esperança. Mas nunca lí Poliana Moça, por achar um livro chato, água com açúcar. Sempre gostei do real. E nunca abdiquei do ato de imaginar.
Assim em dezembro tento ir construindo minha narrativa de “despedida” de 2020. Não sei ao certo se esse ano nos deixará. Um trauma não é fácil de ser contornado. O mar de dores vividas na proporção global, em 2020, talvez não seja borrado por nenhum tipo de esquecimento. Talvez como no mito de Inanna, tenhamos que ir bem no subterrâneo das experiências, para depois poder emergir. Comigo acontece que os sonhos chegam intensamente.
Sonhei outro dia com mainha, que depois de 17 anos de sua partida a imagem chega suave como uma aquarela. Sobre a irmã perdida em abril de 2020? Só a opacidade, o vazio, o silêncio. Talvez quando a dor aliviar eu sonhe, meu inconsciente flua outra vez, e a reencontre no simbolismo para um abraço enquanto a noite durar, e depois acordar com a sensação da clandestina felicidade.
Em dezembro, ainda de 2020, enquanto comemoramos 100 anos de Clarice Lispector, contabilizamos os mil dias sem a Marielle Franco, cujo assassinato é a expressão da necropolítica e de uma fissura profunda no sistema político brasileiro, que ignora completamente a gravidade desse acontecimento para a democracia do país. Solidarizo com a família e amigos de Marielle, e sigo dando pêsames ao Brasil pela fragilidade de suas instituições representativas.
No lugar da árvore natalina estou me vestindo simbolicamente de cinzas pela morte de tantas crianças negras nas periferias desse país. Se a gente se compadeceu com a imagem da criança morta no game bizarro mostrado no filme Bacurau (de Kleber Mendonça), imagina o tamanho da dor das mães, pais, irmãos, amigos das crianças negras mortas por balas que não foram perdidas. Como nominar tamanha atrocidade de “bala perdida”? Como considerar que seja acaso a morte de tantas crianças negras brincando em suas calçadas, ou dentro de suas casas, ou colocadas num elevador, como o menino Miguel? Eu não sou Poliana Moça, e essa coisa do espírito do Natal para invadir lojas, passar o dia empazinado, e o dia seguinte de ressaca, nunca funcionou comigo.
A minha imaginação de Natal quem deu foi mainha, e era bem simples. Primeiro poder rezar agradecendo a Vida, depois, quando o ano era bom, se arrumar com roupa nova, se sentir mais bonita. E por fim, a liberdade. Quando eu podia sair e voltar para casa às dez da noite com minha amiga Marisa Dantas, muitas das vezes fazendo o trajeto da Rua do Prado até a sorveteria Rainha. A espiritualidade, o afeto e a liberdade sempre foram os principais presentes natalinos.
O ouro, incenso e mirra vão se refazendo cotidianamente na minha existência, no espaço invisível do presépio, que acaba se materializando no Natal. No Natal eu evoco a memória de todos os presépios que vi na casa da amiga Agostinha, que tinha uma coleção linda que tanto amava. Apenas por meio das expressões de amor consigo ainda enxergar a Cristandade. Sem templos, sem dogmatismo, sem paralelismo político-religioso, sem vozes beligerantes, sem tronos, sem poder…
De que vamos ou vou me cercar neste Natal? Acredito ainda que de uma prece, afeto e liberdade. Eu desejo ainda ver o Tempo metamorfoseando-me. Observo agora meus cabelos, agora mais grisalhos, e recordo dos cabelos de minha avó e mainha. Nessa pandemia pude olhar mais para os meus e eles que iam me falando dos caminhos percorridos até aqui. Tive mais tempo para olhar o espelho. Vi mais vezes meu olhar perplexo, assustado por vezes com a convicção da iminência da morte agora escrita com o M maiúsculo e grafado nas estatísticas da Covid-19. Cheguei a dar conta também da variabilidade das lentes que carrego desde a adolescência, com as quais pude enxergar melhor o Universo, dentro e fora de mim.
Intimamente desejo um Natal mais silencioso. Meu gesto de saudade a todas as pessoas que não estão aqui nessa passagem do Tempo.
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