Acho que a água me define enquanto elemento, gosto muito que seja assim. E não é pela vinculação com o signo de câncer, que não levo muito em conta. Mas porque nascida numa área de poucas chuvas, a água sempre esteve no centro de tudo. Na nossa casa água era um assunto sério e solene: não se podia desperdiçar, ninguém era doido de lavar calçada, deixar torneira aberta, pingando. Era muito protocolo para garantir água de qualidade dentro de casa, que estava na zona urbana do semiárido paraibano. Essas regras norteavam muitas ações cotidianas, desde o preparo da comida, o banho que ia tomar, a limpeza da casa, das roupas, o cuidado com as plantas e animais domésticos.
Quando a água era pouca, era um Deus nos acuda: banho de cuia, roupas esperando o dia do abastecimento para serem limpas, casa apenas varrida. A geladeira parecia um cofre e a água, o maior tesouro. Eu não conto as vezes que na imaturidade, achava aquilo um exagero e bolava de rir ao abrir a porta da geladeira e ver tanta água armazenada, além dos potes, baldes, bacias, cisternas. A consciência ambiental no tocante ao uso e preservação dos recursos hídricos veio bem cedo e se acentuou quando passei a trabalhar com agricultores e agricultoras da Articulação do Semiárido Paraibano. Me ensinaram a entender, de forma poética, lúdica, mística, sistêmica e complexa a centralidade da água não na vida cotidiana, imediata, mas para o Planeta, as espécies, era preciso pensar de forma paradigmática a água, lutar pela água como um direito humano e refletir sobre um modelo de desenvolvimento verdadeiramente sustentável.
Se a água já era um elemento bastante relevante em meu modo de ser e entender o mundo em minha volta, minha identidade e pertencimento como sertaneja, com agricultores e agricultoras do semiárido passei a entender que as águas do Planeta estavam além do meu quintal. Essa experiência me ajudou a dar um passo relevante como pessoa humana, cidadã, espécie.
A discussão sobre as mudanças climáticas evidenciou um pouco mais, o que talvez não esteja em pauta para muitas pessoas, que são os processos de privatização da água. Essas dinâmicas muitas vezes envolvem o crescimento cada vez maior do mercado da água que nos chega diariamente, à disputas densas de territórios que envolvem imensos e relevantes lençóis freáticos. Essa questão envolve ainda as dinâmicas de uso, reuso e tratamento (saneamento).
Recentemente ao ver uma quantidade imensa de peixes mortos na Barragem da Farinha(interior da Paraíba) lembrei de alguns filmes que havia visto sobre envenenamento de comunidades por águas contaminadas, e isso me fez ficar bastante assustada, especialmente se consideramos o volume de agrotóxicos que é depositado em solo brasileiro. Pensar sobre as águas me faz lembrar ainda de Mariana e Brumadinho, das enchentes de Espírito Santo, Minas Gerais e as últimas chuvas na cidade de São Paulo. Ausência e grande volume no contexto dos recursos hídricos implicam em diferentes questões no mundo social, político.
Não fico pensando nas águas doces apenas. As águas salgadas, os mares obstruídos pelos volumes imensos de plástico e dejetos. Foi apavorante ver o óleo tomando conta das praias do Nordeste. Só que não ver o óleo hoje não representa a certeza de que na profundidade não haja comprometimento de espécies marinhas e poluição dos mares.
Recentemente a artista Adriana Calcanhoto lançou o álbum Margem, um apelo, uma voz tentando sensibilizar gerações por meio das canções. Em Margem, as canções não vão romantizar o mar, as águas. Elas dizem dos dramas humanos e sociais nos versos, ao ressaltar nos versos: “Crianças encalhadas na costa de Lesbos/pacotes de cruzeiros pelas Ilhas Gregas/ o plástico do mundo no peixe da ceia/ o que será que cantam as tuas sereias?”.
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