O título acima descreve o tema do livro da jornalista argentina Selva Almada. Tive acesso à publicação frenqüentando uma livraria da cidade. Embora há anos pesquise a temática da violência contra mulheres, às vezes me pego querendo fugir desse assunto. Seja por considerar uma tema dos mais difíceis a serem refletidos, ou porque diante da realidade a gente vê um contexto complexo de diante dos avanços e retrocessos no seu enfrentamento.
A questão é que o feminicídio, tema central da publicação, infelizmente é um problema gravíssimo que a gente tem que refletir. Almada reconstrói através de seu livro reportagem, a trajetória de três mulheres argentinas brutalmente assassinadas na década de 1980. O faz a partir de um olhar subjetivo, de uma escuta profunda de si mesma enquanto mulher, e também de tantos sujeitos sociais afetados pelo feminicídio. Porque se engana quem acha que exterminar mulher por sua condição de gênero a tira de cena, ou circunscreve esses crimes no âmbito doméstico. Feminicídio é uma questão pública que afeta tantos aspectos da vida em sociedade. Não é apenas uma questão de segurança pública, é de saúde, economia, educação e cultura.
A reconstrução das histórias de feminicídio sempre deixa algo importante, sob meu ponto de vista, ela tira da invisibilidade as trajetórias de mulheres que tiveram sua existência interrompida, evidenciando aspectos relevantes desta tipologia de crime. A jornalista inclusive logo no início do livro explica a importância do termo, inexistente na época dos homicídios das jovens Andrea Danne, Maria Luisa Quevedo e Sarita Mudín.
Selva também se situa como protagonista, não só por ter sido impactada com as notícias dessas mortes, mas por se pensar também vulnerável, enquanto mulher diante da violação da vida das mulheres cotidianamente. O desenvolvimento desse olhar aproximado, faz com que ela percorra um caminho investigativo, tecendo a história de vida dessas mulheres, antes e depois de seus crimes, “cantando sobre os seus ossos”, como afirma Clarice Pinkola Estés. Ela as ressuscita temporariamente. Esse milagre produzido pelo jornalismo literário possibilita que enxerguemos mais claramente um tema que alguns insistem em querer jogar para debaixo do tapete, silenciando, ou simplesmente ignorando o que dizem as mulheres sobre esse assunto.
No Brasil, por exemplo, segundo dossiê do Instituto Patrícia Galvão, 13 mulheres são assassinadas por dia. Os tribunais de justiça do País movimentaram 13.820 processos de feminicídio só em 2017. Muitos de nós tomamos conhecimento de alguns casos que são mais visibilizados por meio da imprensa.
A imprensa tem um papel fundamental no enfrentamento aos crimes de ódio contra mulheres. Porque entre outras coisas, o jornalismo precisa além de informar sobre o que está por trás destes crimes, melhor qualificar suas pautas, saindo do sensasionalismo que revitimiza e culpabiliza as mulheres, e caminhando para a superação da espetacularização dos casos, que em si opera uma violência simbólica que também alimenta o ciclo de violência que afeta mulheres e também homens, crianças.
Depois de ler o livro, fui pesquisar sobre Almada, quando soube que ela esteve esse ano na Feira Literária de Paraty, na ocasião discutindo a temática com os participantes. Sua narrativa é simples, cuja força e sentido de superação os leitores e leitoras encontram no percusso da própria escritora, em sua decisão de buscar no passado algumas respostas para nosso tempo presente. Desnaturalizar os crimes de ódio contra mulheres é uma tomada de decisão importante seja no jornalismo, na literatura ou na vida cotidiana. É também uma chave para desconstrução de uma cultura de violência e sua superação.
Sandra Raquew Azevêdo.
Jornalista, doutora em Sociologia, docente do Dejor-PPGC/UFPB
Como você, tento fugir dessa pauta, mas ela me persegue e com isso acredito estar de alguma forma predestinada a enfrentá-la e combatê-la
Verdade Lydiane. É muito difícil ser indiferente ao contexto de aniquilação da vida, em especial, da vida das mulheres