A primeira narrativa que ouvi sobre o Cangaço foi de minha avó Antônia, na infância. Não sei porque ela me contou essa história de quando Lampião passou nas terras do pai dela, vindo de Pernambuco. De como as pessoas ficaram assustadas, de como o pai dela se comportou, e também de que nada de mal havia se sucedido por lá. Falou da devoção ao Padre Cícero, e de como isso tinha sido importante para livrar a família e demais moradores de seus temores em relação ao Cangaço. Nunca havia visto sequer uma imagem do Lampião e seu bando. Narrativa que só tive contato muito tempo depois por cordéis, sala de aula, canções. E essa história ficou comigo, mais como uma lembrança de um momento com ela do que qualquer outra coisa. Bem no início do século XX minha avó era uma mocinha e mesmo idosa não havia esquecido esse momento.
Recentemente um livro lançado me instigou a curiosidade, Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço, da jornalista Adriana Negreiros. Queria ler especialmente pelos aspectos relacionados à história da presença das mulheres nos bandos. Pensei que a narrativa do ponto de vista das mulheres teria a acrescentar ao longo traçado das narrativas sobre a temática.
Negreiros vai delineando um fio difícil de percorrer, porque envolto em mitificação e representações sociais estereótipadas, a trajetória de Lampião e dos demais bandos de cangaceiros é um labirinto complexo. No entanto, a pesquisa histórica tenta trazer alguma luz no sentido de refazer algumas biografias femininas de mulheres levadas (em grande parte de forma violenta) a viverem fugidias na caatinga. A jornalista procura sobretudo compor fatos importantes da história de vida de Maria Gomes de Oliveira, Maria Bonita. E o faz a partir de bases documentais vastas e relevantes ao longo de décadas de estudos sobre o Cangaço que dá a impressão de ser um tema inesgotável.
Um acontecimento histórico que perdura no imaginário e que diante de sua massificação vai sendo reatualizado na imaginação. E com forte apelo comercial, parece que desde o princípio, conforme a própria narrativa do livro nos leva a pensar.
Em relação às mulheres, a história delas nada tem de romântica, tão pouco de qualquer espécie do dito empoderamento feminino. Saber manejar uma arma na Caatinga não fazia diferença diante da realidade de não ser considerada como sujeito de direitos, inclusive sobre seu próprio corpo (como perdura em muitas situações hoje). O livro reportagem, incide numa linguagem romanceada, e faz também um levantamento da crueldade a que as mulheres estavam sujeitas, por sua condição feminina, ou melhor dizendo, por seu gênero. E muitos são os registros de estupro, violências similares por parte das volantes e dos cangaceiros. Muitos casos do que hoje conhecemos categorizados como feminicídio.
Eu que sempre achei bonitas as imagens feitas pelo fotógrafo e cinegrafista sírio-libanês Benjamim Abrahão, no Nordeste brasileiro, junto ao bando de Lampião, senti um mal estar ao ter contato com muitos dos relatos trazidos no livros diante da crueldade sofrida por mulheres. Nesse aspecto a publicação reafirma sua angulação, de uma forma contundente e muito crua por vezes.
É uma temática que não dá para idealizar, embora tenha sido essa a tendência da literatura, do cinema, da televisão, do cordel, entre outras artes, quando se fala no Cangaço, especialmente nas figuras de Lampião e Maria Bonita, e especialmente quando transformados em mercadoria ( fetiche).
Para mim é mais interessante compreender a força estética que se constituiu nesse período histórico com e por esses atores sociais num movimento de errância, e de seu nomadismo, e por sua expressão na cultura material e imaterial, e de como essa dimensão atravessa nossa história até em tempos atuais. Acredito que o trabalho consistente e original do historiador Frederico Pernambucano de Mello, no livro Estrelas de Couro – Estética do Cangaço (Editora Escrituras) é inspirador e criterioso.
Em relação às mulheres, algumas delas conseguiram sobreviver ao Cangaço e as Volantes, elaboraram suas narrativas diante do vivido, a exemplo de Dadá( Sérgia Ribeiro da Silva), raptada e violentada por Corisco aos treze anos de idade e que morreu na cidade de Salvador, em 1994.
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