(Dedico esse texto ao querido jornalista e escritor José Castello, por sua escrita que anima a alma.)
Hoje eu dou continuidade aqui nesse espaço de A União a história de uma relação bem antiga com meu amor pela escrita, a qual tenho muito apreço. Uma relação em que existo e significo cotidianamente os sentidos sobre a subjetividade, identidade e política. Já escrevia antes de ser jornalista profissional, como adolescente, com uma caligrafia horrível, como dizia minha mãe, “com garranchos”. A evolução escrita veio com o tronar-se mulher, na concepção de Simone de Beauvoir, que também era escritora. A escrita como um modo de existir, de narrar a si mesma a partir de diferentes pontos de observação do vasto mundo.
Apesar do amor pela escrita, nunca vivi a experiência de ter um diário como algo confessional. Preferia os blocos, os cadernos, os papéis avulsos, os guardanapos de papel, assim tecia notas, desabafos, manifestos, sonhos, cartas, as crônicas. Desse modo mantinha ao longo do tempo esse desejo que dava conta da fome de alma.
Com o Jornalismo veio a possibilidade de viver literalmente de escrever. Quando faço uma linha do tempo sobre a história da escrita em minha vida, lamento que minha geração testemunhe hoje a morte das notícias como uma narrativa sobre a realidade. Porque a construção social da realidade por meio das narrativas jornalísticas ainda é fundamental a história humana. A imprensa nasce com a Modernidade, é parte relevante da Democracia. É alarmante perceber com o advento tecnológico o esfacelamento da normatividade que torna o Jornalismo socialmente legítimo e essencial, em detrimento da circulação de informações falsas, mentirosas, também socialmente criadas, conduzidas e circulantes de forma estratégica. As mentiras instituindo uma hegemonia, confrontando nosso ideal de se pautar pelo que é verdadeiro, do que de fato é processo vivido, representado simbolicamente, mas real, concreto.
Impressiona também como a escrita de notícias falsas percorre um curso a partir de violações. Não por acaso ela se desdobra em violência simbólica, ou a encarna mesmo. Uma violência que também reside na tentativa de apropriação indevida de uma linguagem, de um modo de representação dos acontecimentos, e a transmutação dela em ficção, no intuito de enfraquecer os fatos sociais, a vida pública.
A escrita é uma experiência muito particular ao passo que é prática que ocorre e se desdobra no social, tem implicações relevantes na vida das pessoas. Na minha vida a escrita tem sido um caminho de Ser/Existir. Do discurso público a escrita é estruturante. No entanto queria recordar que ela é mais além do que a grafia no papel. Vejo histórias e estórias sendo escritas o tempo inteiro como se fossem nuvens delineado pinturas no céu, por graffiti, canções, sons, pela imaginação humana. Nem sempre elas são ditas de uma forma explicita, mas estão aí sendo imaginadas e partilhadas e nutrindo nas pessoas suas formas de pertencimento e expressão.
Com a morte da escrita, das notícias, morremos um pouco também, vamos nos extinguindo socialmente, envoltos talvez numa vulnerabilidade imensa, pela ansiedade da informação, perdidos. Voltando à alegoria da Caverna de Platão, agora sem querer sair de lá. Seja por medo, por alienação, conformidade. Assim, formatamos a nossa própria bolha cuja densidade talvez nos faça afogar pela incapacidade de comunicar, de dialogar, de perceber que o ato de pensar é transitório, efêmero, mas que a capacidade narrativa é uma possibilidade de estabelecer pontes entre o mundo, que faz mais sentido quando compartilhado.
Tempos depois fui me dar conta de que a escrita é ainda poética, não como gênero apenas. Como ambiência, um lugar no espaço-tempo. Um traço, um rasgo. Muitos gritos, na vida de diversas mulheres total alforria. Lutar por esse lugar que é todo seu e criar, tecer as palavras como acordes ao piano, fazer delas algo mais, uma práxis, amar e por vezes detestar, apagar na borracha, ou deletar. E voltar a imaginar, a fazer tudo outra vez, escolher os ditos, pensar e sentir cada palavra, sua intenção e consequências.
Ficar absorta num silêncio mais profundo e permitir que as expressões saiam e, por fim, se deixar povoar por elas como se fossem borboletas girando ao redor de sua cabeça e permitir que essa força possa te guiar, com esperança, dia após dia, para o “mais humano, para o mais amor por tudo”, como deixaria registrado Clarice Lispector.
Essa escrita é a prova real das “borboletas”. Ao concluir a leitura, minha mente passeou por tantas que já fiz e o grau de importância de quem sou. Excelente reflexão!
Que a verdade tome o lugar principal nos noticiários.