Essa semana pensei muito no período da Quaresma. Fazia até certo tempo que não fazia uma imersão na data, em suas temporalidades. Para quem teve avós, pai e mãe religiosos, esse período deixou seus rastros. Fiquei refletindo sobre esse marco, porque a Quarentena me direcionou de volta ao Ciclo de Páscoa. E dois grupos com quem me encontrei virtualmente nos últimos dias teciam suas partilhas e pensamentos sobre esse período. Na infância o que mais me chamava a atenção era o Domingo de Ramos, porque morava na rua Augusto dos Anjos, onde ficava a Igreja de Santo Antônio e sempre via passar a procissão em frente a minha casa. Era muito cênico ver as pessoas balançando os galhos, num ritmo frenético, entre as grandes árvores algarobas da minha rua. Achava estranho apenas a prática de confissão. Não fazia sentido na infância a ideia de pecado mortal
Na adolescência eu também gostava da Quaresma, numa casa cercada de rituais. Mas meus motivos eram bem mundanos, uma vez que a casa poderia ficar virada de ponta a cabeça, e não seria convocada para alguma arrumação. E também porque todas as travessuras eram possíveis, já que ninguém seria punido, porque era Semana Santa.
Assim, as bobas travessuras poderiam rolar, desde que na Sexta Feira Santa, antes do Sábado de Aleluia (quando os pais estavam liberados para punir os filhos), a gente tinha que ficar “bem comportado”, para que todos da casa esquecessem as malcriações do período. Mas nessa fase tinha a penitência obrigatória de nem comer carne, nem doce. E nessa época, no Sertão, Páscoa não significava ovo gigante de chocolate. Nesse período as horas corriam soltas, tardes inteiras vendo os clássicos do cinema, entre eles, “Os Dez Mandamentos”, de Cecil B. DeMille( 1956) e um filme sobre “A Paixão de Cristo”, para irmos às lágrimas.
Na juventude e na vida adulta, mantive ainda a relação afetiva e espiritual com a Páscoa, participando por meio de um grupo de teatro amador, o Expressão, de musicais lindos ao lado do Grupo Karisma. Todos os ensaios, os arranjos, a preparação corporal, cenário, até chegar às apresentações, eram parte significativa da vivência de pensar internamente os ciclos de vida-morte-ressurreição. Mas achei muito estranho quando em meados dos anos 1990, na Capital da Paraíba, as grandes performances com atores renomados encenando a vida de Cristo ocuparam as ruas.
Nesse Ciclo de Páscoa, penso no relato presente em Exôdo 11 e 12, narrativa da morte dos primogênitos. Um texto forte e assustador. Assim como o é no tempo presente ver a morte de tantas pessoas no contexto dessa pandemia. E ver a face do horror e da malignidade na prepotência de muitos “homens” que monetarizam vidas humanas, querem escravizá-las, condená-las a morte.
O que tem se tornado símbolo de vida e ressurreição nesse período é observar tantos pequenos e poderosos gestos de amor e solidariedade na direção de conseguir salvar vidas, seja do Covid-19, seja do abandono, do desamparo, do esquecimento. Eu que já vivi tantas pequenas mortes cotidianas, diante desse caos, vou fazendo a escuta do que pode renascer em mim nessa Páscoa. São experiências que emocionam profundamente, como poder fazer chegar comida, material de higiene, afeto, música, aulas de yoga, orações, palavras antes não ditas…
Deixei a religiosidade com o passar dos anos, observando no que se tornaram os templos feitos por mãos humanas. Por outro lado, nunca quis deixar algo que existe em mim, tão indivisível, e que não encontro palavras possíveis para descrever. Só sinto que pulsa, e é uma pulsão de Vida, que me direciona a conjugar a espiritualidade numa cosmovisão baseada no Amor, e que procura construir não um modelo irreal de perfeição. Ao invés disso me interpela a tecer uma ética que inclui deferentes formas de vida, que considera o que está aqui e o que virá.
Nessa Páscoa eu vou fazendo um caminho interior de muitas paradas, meditando nos ciclos vividos, não pensando em castigos ou na figura de um Cristo ensanguentado. Sigo agradecendo a consciência de uma fé que me move em direção à Vida, e não no sentido da morte, catando minunciosamente tudo que possa expressar para mim que nosso vinculo com a dimensão Sagrada não se perdeu por completo. E que o renascimento é uma Dádiva, inexplicável, Dávida.
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