Desde outubro estamos acompanhando as mobilizações do povo chileno, no enfrentamento difícil à crise provocada pelo fracasso das políticas neoliberais e a tentativa de mantê-las pelo uso descomunal da violência. Neste momento histórico no Chile, não vivendo sob uma ditadura, pessoas estão sendo mortas, torturadas, mulheres estupradas e estima-se que mais de 200 pessoas perderam a visão(parcial ou total) diante da brutalidade das forças de repressão do Estado. E não é fake news.
A população chilena não está em guerra. O que não aceita mais de forma silenciada é uma economia de desigualdades e precarizações, inclusive provocadas pelo sistema previdenciário. Em entrevista recente ao Valor Econômico, Binyamin Appelbaum, integrante do conselho editorial do “The New York Times”, afirmou que “o sistema de previdência do Chile é uma perversão da ideia de seguridade social: ele transfere riqueza dos pobres para os ricos. Ele torna a desigualdade ainda mais grave”. É por um processo de redistribuição que a população chilena está unida, pela reversibilidade de um contexto em que as aposentadorias representam menos que o salário mínimo. O motivo que o une o povo chileno é o enfrentamento da desigualdade.
Não por acaso, que se canta aos quatro cantos do Chile, a música de Victor Jara, “Pelo Direito de Viver em Paz”. Essa canção é um poema pela paz, diante dos genocídios praticados ao longo da História, pela afirmação do direito à Vida. A vida vai, diante das violências semeadas mais recentemente em diferentes países da América Latina, sendo recriada por meio da arte.
Mas seria ingênuo também pensar que seria toda expressão artística que estaria comprometida com a defesa dos Direitos Humanos. De um modo geral o que se tem produzido pela indústria cultural em escala global se associa muito à produção de um lixo simbólico e uma cultura tóxica que ritualiza violências, as glorifica e promove. Raros são os trabalhadores e trabalhadoras das artes que, atuando mundialmente, conseguem se manter dentro da singularidade de sua proposta artística e assumir uma voz dissonante. Conheço alguns, e os considero raríssimos, corajosos e preciosos.
Diante ainda de uma crise profunda na Bolívia, com retorno, infelizmente, à Caça às Bruxas, a vida de etnias indígenas está ameaçada. Não apenas lá, aqui também. Aí eu lembro do texto clássico da Silvia Federici, em “Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (Elefante)”. No livro a autora reflete sobre como a caça às “bruxas” esteve (ou ainda se encontra) no centro do desenvolvimento do capitalismo, pelas relações de expropriação de terras e recursos naturais das populações. Pensamos, infelizmente, num infame retorno de caça às “bruxas” quando vemos pelas tvs e internet uma mulher, indígena, prefeita, ser arrancada de seu lugar à força, maltratada, cortados os seus cabelos contra a sua vontade e exposta mundialmente de forma humilhante.
De acordo como o Instituto Nacional de Direitos Humanos no Chile, em recente matéria jornalística publicada pelo Portal Uol, as mulheres chilenas têm sido detidas, desnudadas, estupradas. O estupro tem sido utilizado como uma arma de guerra pelas forças repressoras. Mas o povo chileno não está em guerra, apenas dizendo não a uma condução das políticas públicas que tem gerado desigualdade, expropriação de seus minérios e recursos naturais como a água, e produzido violências e profundo empobrecimento da maior parte de seu povo. É pelo direito de viver em paz.
Neste contexto de distopia no mundo, as artes comprometidas com a Vida têm sido sementes contra a bestialidade. Assim seguimos pela vida, pela liberdade e pelo direito de viver em paz: cantando, bailando, tocando, escrevendo, encenando, imaginando, criando imagens, tecendo narrativas de paz, amor, liberdade, dignidade. São ações que não se pode aprisionar. Na maior das loucuras a arte está lá viva, latente, fluindo, crescente, unindo, multiplicando, curando, seguindo livremente seus percursos… Um antídoto para tantos venenos.
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