Nesses dias tão duros em que o racismo estrutural vitimou uma criança no Brasil, o Miguel, eu tentei muito organizar as forças para não cair na tristeza profunda. Acredito que como eu muitas pessoas se sentiram assim, tentando juntar seus cacos, diante dessa lama, e seguir vivendo e acreditando, e reafirmando que vidas negras importam.
Junho é um período bem complexo para meus ciclos interiores. O mês junino representou meu último encontro com minha mãe. Ao passo que representa também o mês de nascimento de meu filho. A vida é assim, e a gente segue costurando esses sentimentos bem singulares. É menos tristeza hoje, tudo se traduz mais em memória, e num sentimento de segurança e fortaleza quando a gente faz as travessias mais profundas.
Nos últimos dias eu ando tecendo uma genealogia. Nunca tinha parado para pensar sobre isso, mas a chegada da maioridade de meu filho me conduziu a pensar sobre as pessoas que vieram antes de nós. E de alguma forma queria fazer esse registro. Sem qualquer pretensão de buscar brasões ou discursos vangloriosos de grandes feitos.
A minha intenção mesmo foi entrar num tempo interior em que pudesse juntar, encontrando e reunindo os nomes dos ancestrais, um pouco do afeto desses encontros sobre os quais a gente não tem domínio algum. Foi impactante pegar no fio de volta a tempos passados, onde sequer existia. Instigada procurei algumas fontes na família, a quem agradeço muito: Fernando Azevêdo, Carlos Azevêdo, Catarina Lourdes Leite, Sebastião dos Santos, Pedro Herculano, Ubiratan Herculano, Maria de Fátima dos Santos Lima. Todas essas pessoas queridas, todas informantes que ofertavam com muito carinho dados preciosos.
Percorrer essa genealogia das asas de Ícaro proporcionou muitos deslocamentos por histórias cruzadas, territórios d’Além Mar. Imaginar as migrações, as navegações, os deslocamentos que trouxeram famílias até aqui, até o que somos hoje, ou até onde seremos, quem sabe? Eu descobri tantos nomes que desconhecia, nomes de mulheres.
Encontrei os nomes dos pais de meus avós, suas localidades de origem. Poder encontrar por documentos os filhos perdidos pelas avós, anjinhos. Encontrar o registro da sua memória mais antiga, e nela escrita o nome de um de seus irmãos. Navegar, mesmo que virtualmente, pela Freguesia Santo Estevão de Gião. Constatar que a poesia que você enxergou e recebeu de seu avô tinha uma origem linda e verdadeira, por ser ele um também poeta de São José do Egito.
Escrever o nome das mulheres foi outra emoção diferente. Algumas bem mais próximas historicamente como Antônia, Francisca. E outras que só conheci através da ternura de seus filhos e filhas: Maria do Carmo, Maria Clara, Maria Paiva, Florência, Maria Antônia, Anna Joaquina, Catarina Alves, Sebastiana, Maria dos Prazeres, Maria Loucia, Maria Joaquina… Imaginei essas mulheres gestando e embalando suas crianças, e elas, por sua vez, as carregando em seu destino por esse vasto mundo.
Enquanto tentava compor um mapa com suas incompletudes, lá fui, conversando com pessoas que não falava há anos. E foi alegria, gratidão e perdão se movimentando em mim. Nesse momento não encontro bem as palavras para expressar a possibilidade de reunir em alguns papéis que colei tantos nomes, e como todos, significam, porque de certa forma se moveram até mim, ao que sou, e o que talvez, através de um descendente continuará a ser. Que seja livre, muito livre, e imenso em amor, humor, força, sabedoria e espiritualidade.
E fiquei me perguntando, porque só agora? Fiquei pensando nas perguntas que não fiz aos meus avós, e aos meus pais… Por isso acho que se você tem essas pessoas por perto de você, não se encabule em perguntar, porque chega um dia que a gente tem vontade ainda de fazer perguntas, que por sua vez não poderão ser mais respondidas. Assim sigo pensando sobre a chegada da maioridade do filho, e da mãe que fica um pouco para trás, da mulher que emerge diante de um homem que por si se faz. Sigo cantando a nossa canção “… eu quero uma casa no campo, onde eu possa ficar do tamanho da paz, e tenha somente a certeza dos limites do corpo e nada mais …- eu quero o silêncio das línguas cansadas, eu quero a esperança de óculos e meu filho de cuca legal, eu quero plantar e colher com a mão a pimenta e o sal…
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