Pode parecer óbvio, acho que a construção social da paternidade diz até hoje muito sobre as masculinidades. Por vezes, tenho a impressão que não se pode ser generalista, entretanto a figura paterna de certo modo aparece como uma xilogravura do social ou do que historicamente se constrói em torno da expectativa de ser homem no mundo. Por vezes fico imaginando que talvez tenha aprendido inicialmente sobre masculinidades, vivendo numa casa com muitos irmãos, do que propriamente sobre mulheres.
Não poderia falar sobre uma única maneira de ser homem, sempre me foi impossível crer nisso, porque cada um dos que havia lá em casa era um universo singular demais. Irmãos que lembram muito a música do Gonzaguinha, todos eles “com a marca de seu tempo por sobre seus ombros”. Nada fácil. Quando volto o olhar para o microcosmo que foi a galáxia da minha casa fico imaginando que ela bem que poderia ser um experimento sociológico da Escola de Chicago. Como podia haver tantas particularidades num único lugar, como assim tanta gente tão diversa física e emocionalmente? Quase um time de futebol dentro de uma casa. Anoitecendo e amanhecendo juntos, assim por tanto tempo, vivendo tantas fases da vida num só lugar. Fazendo daquelas paredes, janelas e portas universos tão singulares e paralelos.
Com o tempo, fui aprendendo simultaneamente sobre masculinidade e paternidade. Com filhos homens, jovens, solteiros, que se tornaram pais de irmãos pequenos. Lidar com essa realidade na adolescência era um pouco desafiador, mas em todas as outras fases da vida foi bem mais divertido.
Essas masculinidades eram fluidas. Transitava por elas muitos arquétipos. Românticos, aventureiros, machões, tímidos, inventores, contadores de estórias… Essas figuras masculinas, independentes que eram, ao passo que comprometidas com a família, viviam intensamente suas etapas de crescimento. E isso se refletia de muitas maneiras, inclusive nas canções, eram muitas as fases: fase Roberto Carlos, John Lennon, Caetano Veloso, Abba, Queen, Beatles, os Três do Nordeste, Blitz, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho, Belchior e Amelinha, 14 Bis, sem falar nos Lps de discoteca dos anos 1970. De mãos dadas com esses guerreiros-meninos eu, garota, fui levada ao cinema ainda bebê, carregada em bagageiro de bicicleta, levei uma chifrada de um bode, sofri muitas quedas e um choque elétrico intenso na infância, tomei banho de rio, fui à festa de adulto, comecei a viajar cedo, conheci o teatro estudantil bem jovem, aprendi a defender pontos de vista diferentes e, sem sobra de dúvidas, a me defender…
Na medida do possível aqueles homens tentaram uma rota de fuga de uma masculinidade hegemônica, que os oprimisse tanto. Talvez a paternagem precoce os tenha ajudado, ou talvez lhes tenha roubado um quinhão de suas liberdades juvenis. Lembro agora do Avohai do Zé Ramalho. É bem assim mesmo quando a vida vai construindo outras possibilidades para lidar com “ausências”. Sou de uma geração em que os pais enfrentaram o tabu do divórcio. E se teve um peso enorme para eles e, especialmente para elas que ficaram com os filhos, foi um aprendizado imenso para entender que nenhum relacionamento que oprime merece existir.
Gostei dos vários “pais” que foram meus irmãos. Como gostei muito da infância e maturidade vividas com meu pai: engraçadíssimo, sertanejo, presepeiro, que entendeu melhor a paternidade quando os netos chegaram. Naquela idade de sua vida ele parecia estar mais preparado. O que veio antes disto foi muita experimentação para ele, que não foi muito convencional para sua época.
Em 2016, quando recebi o resultado do exame que me dava a notícia que meu pai, de fato, estava partindo e que nada poderia fazer tardar, engoli por três meses o choro para caminhar junto com ele nessa travessia que seria também a minha. Ele sabia escanear a alma de qualquer pessoa com seus olhos. Sem que disséssemos nada mais realista um para o outro, fomos caminhando submersos nessa ampulheta, que se esvaía. Decidimos olhar mais um para o outro, sabendo absolutamente a irreversibilidade de todas as horas. O hiato do passado parecia nunca haver existido. Não teríamos um futuro alargado. Costuramos a quatro mãos o nosso presente, tecendo um pacto de atravessar juntos a finitude.
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