Das memórias mais nítidas que carrego da infância é caminhando de mãos dadas com mainha, indo ao Cemitério Sao Miguel. Era sagrado, todos feriado de Dia de Finados, estávamos lá. Só que a visita era preparada antes. Porque ela nunca deixou enquanto viva de cuidar de seus mortos, de suas memórias. Da limpeza do túmulo, que durante muito tempo ela mesma quem fazia, e em outros tempos, com a chegada da maturidade, pagava alguém para fazer. Religiosamente.
Mainha não tinha medo de morrer. E para mim era tão estranho a naturalidade com que encarava a morte, durante muito tempo essa atitude dela causou espanto em mim. Era como se alguém suavemente acolhesse uma fatalidade sem contestar. Sobre a morte nunca expressou nenhuma contestação ou mal estar. Apenas em alto e bom som, e na frente de todos nós, pedia a Deus levá-la primeiro que aos seus filhos e filhas.
De certo modo eu penso que mainha estava nos ensinando que viver e morrer eram quase a mesma coisa. Se por um lado precisamos aprender a viver, quem sabe fosse necessário mesmo saber um pouco sobre o morrer. E sobre o morrer e as perdas ela entendia e aceitava. Não fazia malassombro. Dizia que sobre mortes e os mortos a gente não tinha que ter medo, porque a gente tinha que ter medo mesmo de quem estava vivo.
Em novembro a cidade que nasci é um braseiro, quente demais, e por isso, ela me puxava pelo braço bem cedo, para chegamos ao cemitério nas primeiras horas do dia, e nesse horário sempre havia pouca gente. E ao chegar e ver tudo muito limpo e arrumado, ficávamos em silencio por bastante tempo. Ela rezando e eu observando minha mãe rezar, olhando novamente as fotos de meu avô e avó e suas datas de nascimento e morte. E ficava imaginando esses tempos como deveriam ter sido. Observava a grinalda, a cor em que se renovara a pintura do túmulo, as velas(que nunca gostei). E sentia o balançar lento das folhagens das árvores em volta.
Quando o cemitério começava a ficar cheio era hora de ir embora. Geralmente ela aproveitava também para fazer uma visita a uma irmã ou alguma amiga de juventude que morava no mesmo bairro do cemitério. Visitinha rápida.
Por entender sobre o morrer, quando chegou seu dia, minha fez de suas ultimas horas os momentos de maior consciência e entrega.
Como quem quisesse ensinar meu filho a encarar com naturalidade o morrer, e a importância de cuidar da memória de quem partiu, fui eu um dia pintar o túmulo com ele e uma sobrinha, num dia ensolarado, com tinta e pincel colorindo de verde aquela paisagem borrada da infância. Conseguimos, os três, fizemos até uma foto desse dia que guardo com carinho. Nao sei como eles leram esse momento. Para mim foi como poder fazer um carinho novamente.
Quando assisti o filme do Pedro Almodóvar, “Fale com ela”, foi como se tivesse voltado outra vez ao cemitério com mainha, a gente rindo, caminhando, rezando, de mãos dadas. Silenciosamente eu despi a minha alma, e me banhei em lágrimas, não apenas pela saudade, também pela alegria de ter uma memória, por entender que morrer não se traduz necessariamente em esquecimento. Que a memória de quem parte seja algo a se cuidar, e pode nos mover alegremente por muita vida.
Eu gosto muito da cosmovisão andina, indígena e mexicana sobre nossa relação com quem ja partiu. Me identifico bastante. Celebrar a vida e a linha do tempo, a relação e os ensinamentos, entender a presença agora “invisível” de quem amamos muito.
Elaborar uma despedida leva tempo, e falo de uma cronologia não linear. Ao passo que milagrosamente a vida vai sempre florescendo. Eu gosto de lembrar de meus “mortos”, se em alguns momentos choro, dou muito mais gargalhadas ao recordar das mungangas de painho, mainha, dos momento com minha avó Antonia, minha tia Bernadete. Ainda recordo com clareza lindos desenhos feitos por minha prima Verônica, e de como cantava e tocava violão tão bem. E da minha irmã que me deixou faz pouco tempo tudo ainda é estranho… Mas ela me deixou os cadernos de receitas que fez para mim, e sempre repleto de mensagens, recados entre uma receita e outra. E acho engraçado, porque escreveu da mesma maneira que falava. E isso me ajuda a escutar nitidamente sua voz. E, por isso, o silencio de sua ausência ainda não me deixa um vazio.
Eu gosto da sensação de sonhar com meus mortos. Sentimentos bons inundam minha alma. Como estar numa pintura imensa e elas passarem a ter vida, movimento. Reencontro seus rostos, suas vozes, seus objetos, suas paisagens, e me encontro novamente perto de cada uma dessas pessoas. Ao acordar agradeço a Deus por ter estado acompanhada de quem amo no mundo dos sonhos.
Por vezes me pego pensando se a vida não seja um grande sonho, e que a morte seja talvez aquele dia em que a gente desperta e reencontra a existência profunda da qual pertencemos e as pessoas que sempre amamos.
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