A arte sempre nos ajuda, sempre ajudou. Iluminou, e segue dando pistas. Quando imagino o mundo sem as artes penso que seria bruto e triste demais. Se não fosse um corpo transmutado pela arte penso que a vida na Terra seria insípida. Recentemente, num passeio de bicicleta num dia de domingo observei a sonoridades das casas. Do lado de fora ecoava música. Lembrei das pessoas nas calçadas nas cidades do interior.
As músicas, diversas, na paisagem de um domingo bucólico de uma Capital trouxe uma emoção bonita. As ruas sem o habitual barulho dos carros, os bairros aparentemente tranquilos. Lembrei de Vinícius de Morais cantando “Gente Humilde”. Essa música, crônica tão bela, já foi cantada por intérpretes como Taiguara, Renato Russo, Maria Bethânia, Nélson Gonçalves, Chico Buarque e ainda pelo próprio Vinícius, cada um com seu arranjo, sua entrega.
Observar as músicas ecoando do interior das casas para as ruas me tomou por inteiro. Por um instante, ínfimo, parecia não existir os ataques ao povo palestino ou pandemia a assolar as nossas vidas.
Nessa pandemia já “fugi” para ver uma exposição do Fávio Tavares, lá no Centro Cultural São Francisco. Repleta de medo da Covid-19 e ansiedade, com receio de encontrar pessoas. Decidi ir num sábado pela manhã, por volta das 10 horas. Antes de chegar fiz questão de me arrumar como se fosse a algum evento festivo. E para mim era bem celebrativo. Comemorava a vida do artista; a preciosa coleção de Luizmar Medeiros de Oliveira; a curadoria primorosa de Augusto de Morais. E festejei interiormente essa “fuga” de casa para essa “aventura”. Ficar absorta a contemplar as cores e narrativas do Flávio e estar a sós com as telas. Poder me perder na imaginação bela e poética das paletas do artista.
A cidade que moro tem muitas cores, até nas suas ruínas. Vejo nas casas embotadas do Centro Histórico ao logo do tempo serem revestidas pelo grafismo urbano. É um modo de resistência, e uma poética do corpo, desse complexo organismo bem vivo, a cidades e sua gente. Observo nas paredes dos prédios abandonados as narrativas urbanas sendo encarnadas nas paredes, expressão da história e suas lutas, tecendo muitos caminhos. Por isso que eu gosto imensamente de andar a pé, olhar as marquises, arbustos brotando pelas paredes dessa cidade que me atravessa.
Por vezes sinto vontade de abraçar certas casas como abraço as árvores. Sob certo ponto de vista acho que urbanisticamente poderíamos restaurar mais e demolir menos. Fazer uso do que já existe. Certa vez passei pelo que foi o antigo Hotel Tropicana. O prédio encarnava a desolação, emanava uma tristeza. Falta de gente, de cuidado, de finalidade pública.
Ao invés das ruas, das casas, dos espaços de convívio, vamos aos poucos nos encarcerando nas telas. Observando um “mundo” sem amplitude, experimentando os “espaços” catalogados pelo binarismo computacional. E nutrindo quem sabe o desejo de habitar os prints que as máquinas nos sugerem.
O bom mesmo é poder encarnar uma cidade, mesmo que ela se traduza no trecho de sua rua, nas bodegas de seu bairro, e uma infinidade de cantos que faz nosso coração palpitar. Descobrir na cidade seu povo, seus poetas, artistas, entregadores, a moça da padaria, o pescador e, porque não, seus gestores e gestoras …
Quando vi a exposição “Uma viagem no tempo e na obra de Flávio Tavares”, me emocionei ao poder ver o poeta Caixa D’água ainda jovem. Pois o conheci já um homem maduro, cabelos bem grisalhos. Ao ver o poeta ainda jovem na tela, na luz e cores de Flávio Tavares fui levada ao encontro que tive com ele e o poeta Orlando Tejo e Dona Josymar Tejo, no restaurante La Veritá, em meados dos anos 1990. Foi uma noite entre poetas e os jornalistas Carlos Azevêdo e Astier Basílio. De lá para cá foram tantas transformações nessa cidade. Mas toda vez que passo pela rua Desembargador Souto Maior lembro das nossas vozes ecoando noite a dentro, do afeto e dos fios de nossas histórias sendo entrelaçados.
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