Há dias em que a realidade te atropela. Momentos em que a “gente se sente como quem partir ou morreu”. Tão precisa música do Chico Buarque a descrever a roda viva. É uma criança que morre tragicamente. São três crianças negras desaparecidas, até então não encontradas. É vacina que falta. É cepa nova que chega. É gente que sente prazer na morte. E entre tudo isso memes, muitos memes, stories, likes, reposts. Como dizem os jovens: vida que segue.
Há dias em que as palavras padecem como uma flor murcha. Como um cacto sufocado em água. E há momentos em que a alma esmorece. Esmorecer para quem não conhece é ficar mufinho(a), sentindo um estágio pré febril, um dolorido na superfície da pele. Letárgico por algumas horas.
Pois passado mais de ano desse estado de adoecimento global, fico me perguntando “o que foi feito deveras…” além do agravamento das desigualdades expressa também na distribuição de vacinas entre os países. Vejo muita gente gritar o verbo Esperançar, e confesso que esse tempo no front já vejo os corpos de muitos exauridos, dos que sobreviveram.
Para “não dizer que não falei das flores” percebo a ciranda bonita do combate à fome que faz chegar comida no prato de muitas pessoas. E ainda bravamente equipes de enfermeiros, médicos, fisioterapeutas, psicólogos na linha de frente. Extremamente cansados mas caminhando passo a passo, enquanto a cura está por se consolidar na vida de tanta gente nos leitos de hospitais.
Escutar a voz de um sobrevivente da Covid 19, sobretudo aqueles que tiveram o quadro agravado, é estar diante do milagre de uma existência preservada em meio a tanto caos.
Em determinados momentos observo e percebo amigos e amigas, de perto ou longe, em carne viva. Numa situação dessas onde a gente coloca as dores?
Recentemente parei para ver o sol nascer, por força de circunstâncias insones. Um dos sintomas comuns de tempos pandêmicos. Um dia nebuloso, e lá vem timidamente se pintando uma paleta alaranjada diante do cinza. Tento seguir caminhando, mas ao observar um senhor a contemplar a chegada do sol, parei mais à frente. Vendo de um lado a chuva desaguar no mar e colado às nuvens um círculo irrompendo, com um sutil clarão. Cinza e laranja, sol que fez pausar suavemente as águas. Um homem a contemplar.
Diante da experiência sagrada de um Sol nascente pensei que o coração um temporal pode abrigar. Lembrei ainda que “meu coração não se cansa de ter esperança de um dia ser tudo o que quer…” Esperançar não é fácil, de forma alguma. Nem é conceito, nem paradigma motivacional. Talvez seja um movimento, como o do sol que se levanta todo dia. E na vida de tantas pessoas vai dando o contorno de sua própria linha do tempo.
A vida, essa intersecção, que o tempo ousa narrar. A dor que a esperança insiste em cuidar. A solidão. O hiato. E os tantos elos que vamos insistindo em manter. E me dou conta que nas fotografias contemporâneas o sofrimento parece ser uma estrutura ausente. Dormente, apenas a contemplar Narciso. Há grandes simulacros pós humanos para disfarçar as dores.
Em algum momento a gente tem que lidar com o mundo ou a interioridade fissurada, carcomida, descascada desse tempo presente. Do lado mais de dentro a alma pede água. Refrigério. E do lado de fora a mecânica do sistema é intragável, não poupam nem os mortos. Recentemente recebi um áudio de uma queixa de o que seria uma coordenadora escolar, a reclamar que os professores estavam morrendo por Covid e deixando o “professor online” sem preenchimento.
Os tais mortos, e os vivos a quem a mensagem era direcionada, sofriam uma ameaça de reclamação através de uma ata. Lembrei do livro “O Processo”, de Kafka. A estupidez de nós humanos parece nos implodir.
Num estágio em que nossas vidas parecem cada vez mais robóticas fico imaginando como seria o dia no qual todas as máquinas tivessem que dar um basta, cansadas dos humanos.
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