Fui vacinada. E enquanto escrevo, a sutil febre me deixou. Antes disso, na noite do sábado passado, quando soube que o sistema de agendamento seria liberado para o grupo que faço parte, tive um nervoso. Um daqueles que se instalam rapidamente, e que faz você achar que tudo pode dar errado. Daí todas as teclas que você precisava clicar aparecem embaralhadas. Mas vamos lá, é a passagem, uma parte do processo complexo, difícil e redentor para a tão sonhada imunização contra a Covid 19.
Finalmente conseguimos, eu e meu esposo. Os sentimentos num tempo pandêmico são bem misturados. Mesmo imaginando um momento tão sonhado e sua proximidade, comecei a ser tomada por muita tristeza e inquietação. Não por acaso, nesse dia muitas pessoas ocupavam às ruas do Brasil para protestar contra as medidas que agravaram a crise sanitária que ceifou a vida de quase 500 mil pessoas no país até aqui. Entre elas muita gente próxima, querida.
Quando o país começa a ter os primeiros casos confirmados, amargo um luto que ecoou na vida das pessoas do Brasil sistematicamente e estrondosamente. Soou para mim como aquele tombo da clássica cena de Alice no País das Maravilhas, em que o poço parece não ter fim. Quando chego à fila do Drive Thru esse fio da linha do tempo me envolve e só tenho vontade de chorar, e choro. Porque imagino as pessoas cuja morte se relaciona à condução de uma necropolítica, e de como a pulsão de morte está tão presente na subjetividade humana nesse tempo.
Enquanto esperava pintava uma mandala. Aproveitei ainda para deixar os alimentos não perecíveis, porque a fome está maltratando a vida de muita gente. Ao ver aquela fila de carros lembrei do filme a Lista de Schindler, mostrando as pessoas tentando escapar do nazismo. Lembrei dos trens que levavam aos campos de concentração, e das imagens das valas, inúmeras, que foram abertas no Brasil, para receber tantos corpos.
Chegou a minha vez. E minutos antes lembrei de todas as vezes em que fui vacinada. Nas campanhas da infância até a vida adulta. Sem mentiras, as campanhas eram fluidas, e a população as via como necessárias. Recordei das mães levando seus filhos para vacinar sem medo. Lembrei do tempo em que vacinação no Brasil era sinônimo de êxito, referência de política pública. Pensei em todas as pessoas do mundo que atuaram para que tivéssemos uma vacina. E mais uma vez me enchi de orgulho da ciência, dos cientistas, dos garis (que já deveriam estar vacinados), dos coveiros, e tanta gente que é invisibilizada e tem ofertado sua vida pela partilha do bem comum, e do tornar possível o bem viver.
Quando retorno ao livro “Opinião Pública”, do Walter Lippmann, gosto de reler aquela frase que diz que “através dos mesmos mecanismos que os heróis são encarnados, demônios são criados”. Uma reflexão de 1922. Um aprendizado para vida inteira. Isso porque entender os mecanismos de construção das fachadas e de tessitura da Opinião Pública, nos permite perceber melhor a conjunção dos simbolismos que sustentam a vida política, ver um pouco mais além da superfície dos fatos ( ou da produção de pseudo-acontecimentos e de narrativas falsas ofertadas como “verdades”).
A demonização da vacina contribuiu para ceifar a vida de muitas pessoas. O que pode colocar ainda em risco a existência de tantas outras, ainda que a vacinação esteja em curso, dada a necessidade de uma mudança comportamental diante das situações de risco que a pandemia ainda impõem.
Ah, é bom que se diga: eu não virei jacaré. O sentimento foi de ser cidadã. De observar toda aquela cena ao redor e falar comigo mesmo: “Meu Deus, quantas mortes poderiam ter sido evitadas. Pessoas morrerem no Brasil por falta de vacina?” É mesmo muito triste, decadente e revoltante. Não tem como apagar esse capítulo da história do Brasil.
Ao terminar o dia numa febril felicidade, fui assistir ao filme “Minari” (Lee Isaac Chung, 2020), e esperancei, por saber que nos é ainda possível escrever uma nova história…
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