O tempo é um pássaro a sobrevoar o céu de nossas almas. E por vezes do poente, “da janela lateral do quarto de dormir” paro absorta a contemplar a paleta de cores a se desmanchar a cada crepúsculo. Observo o tempo no corpo, em especial no útero, nesse ciclo interior de chegada e partida. Penso que já se passaram dezenove anos do dia em que meu corpo se abriu completamente para que uma nova vida alçasse o voo de existir.
Lembro do Eclesiastes tão poético migrando séculos e séculos, falando do Tempo. E a gente inocente e arrogante, achando que pode interpretar todo o indizível mistério que habita o movimento das horas nessa Terra.
Enquanto o tempo segue bailando e escolhendo seus ritmos, por vezes sou obrigada a estar diante da burocracia das telas a dizer o óbvio, a normatizar a experiência de meu corpo e a encarcerar meu tempo particular. Ao ter que estar fixa em algumas das telas, seja do celular, do computador, da televisão, vejo por algumas horas o terror que se instala. A tela extravasa o sangue que escorre das peles negras brutalmente assassinadas nesse país. Ontem uma jovem mulher negra, semanas atrás uma comunidade chacinada, um jovem abordado, crianças desaparecidas…
A distopia somos nós, ou talvez o distópico esteja em nós, não em um vírus. O tempo me faz pensar nas lindas peles das serpentes e da necessidade que elas têm de deixar para trás muitas delas ao longo de sua existência. Imagino quem sabe o que o tecido social precisa de fato mudar.
Simbolicamente tive que me deixar, morrer e ressuscitar tantas e tantas vezes. E ainda sigo habitando esse corpo que se move pela ação do Tempo, do fôlego sagrado, e de uma chama que ainda aquece o Ser. Como a imagem da luz refletida na caverna de Platão. Por vezes ensimesmada seja diante dos absurdos que acontecem, seja protagonista de cada segundo, ato ou cena que planejo ou improviso.
Vi o filme “Professor Polvo” (Teacher Octopus, Pippa Ehrlich, James Reed,2020). Absorta percebendo o mar, uma professora marinha recriando um homem que estava esgotado. Senti saudades do mar estando a poucos metros dele. Das águas profundas e de me desvencilhar do medo do desconhecido. No filme um homem se vestindo de mar, como na canção Afonsina, só que para se reconstruir como ser, entendendo os modos de cognição, de inteligibilidade, de entrega.
O Tempo parece ser também um oceano sem fim a ninar nossas almas, caprichos, a atravessar nosso corpo como as agulhas atravessam as brechas das linhas de crochê, desenhando, desalinhando, circulando, tecendo paisagens. Quando deixo as telas liberto meus olhos que já estão um pouco mais gastos e doídos.
Em geral, ao me desencarcerar das molduras “virtuais”, consigo enxergar um pouquinho melhor, e pareço reencontrar os sentidos mais vitais de uma cronologia que parece seguir a galope, e que precisa de horas lentas para ser compreendida. Consigo voltar a sentir os cheiros e nele o movimento da atmosfera. Dá para escutar um pouco mais, seja as vozes, as canções, os pássaros, a velocidade dos automóveis, as marés.
No tempo tento encontrar o que fui, e perceber o que resta, sonhar como todos os desejos a serem plenamente vividos. No tempo eu sou, existo, não porque penso, apenas porque consigo traduzir a imaginação. Assim também como o movimento dos outros animais também os traduz, nos mostram quem são. O movimento da professora polvo, de nossos cães e gatos, dos vaga-lumes, das borboletas, a dinâmica da vida breve.
E assim vai chegando mais um solstício de inverno (aqui ao Sul) e verão (ao Norte) e mais uma vez junho me lança ao mar da memória dos acontecimentos marcantes, do seu simbolismo, da sua interseccionalidade que se manifestam nos ciclos que atravessamos ao longo da vida. Tempo, essa travessia linda entre o nascer, viver, morrer, ressurgir, integrar, envolver, estar…
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