Se eu for achar que o mundo é o que sai nas informações que circulam nos aplicativos de troca de mensagem, ou nos programas de caça aos “meliantes”, eu estou pebada, como diria um bom sertanejo. O mundo das notícias é bastante complexo. Já falei algumas vezes nesse espaço da coluna. Só que o mundo das informações falsas certamente é muitíssimo mais conturbado e violento. E parece que nesses casos a violência é bem a tônica da ideia de construção de narrativas que agora está na boca de muita gente de modo vulgar. Recentemente a palavra narrativa tem sido pronunciada na boca de esgoto de muitos, sobretudo quando as câmeras e os holofotes estão ligados diante dos eventos políticos.
Narrativa, discurso, enunciado, representação do real… no trabalho de jornalistas, um esforço enorme para dar conta de organizar, hierarquizar, circular, divulgar informações de interesse público, como base em critérios rígidos, entre eles, a veracidade dos fatos. Sei que muitas pessoas estão saturadas com as notícias que por aqui mostram a gravidade da crise sanitária. Ao mesmo tempo, cotidianamente, chega o alerta voltado às boas práticas de prevenção ao coronavírus, as matérias sobre práticas de solidariedade, o testemunho de inúmeras pessoas que estão enfrentando os desafios pós Covid-19, buscando superar todo tipo de adversidade dessa vida, desse tempo.
Não sei se sairemos melhores enquanto sociedade. Reflito que independentemente do que pensemos, a pandemia é um divisor do tempo presente. Quando um dia a pandemia for superada, quem sobreviver viverá no tempo pós pandemia. Não sei se esse tempo será melhor ou pior. Será, como é imperativo do Tempo. Período que nasce marcado por tantas ausências, pela orfandade
Tem vezes que a gente tenta fazer planos nessa linha tênue. Mas rebobina a fita, porque há momentos que a notícia da morte de alguém estimado, como o jornalista Artur Xexéo, faz com que a gente nem mais sonho tenha. E a sensação é de saltar de trampolim esperando que a piscina esteja repleta de água.
Esse mundo tá muito revolto. As pessoas se debruçando a observar pela tela uma caçada de um humano, que ninguém antes nunca ouviu falar, como se fosse um gamer. É a projeção do cotidiano como se fosse um jogo de ação e aventura centrado na metralhadora, ou no carro atropelando os adversários. Soube enquanto escrevo que a pessoa foragida teve o desfecho compatível com as expectativas geradas pela cultura dos abutres midiáticos ou não. Essa semana um programa de TV trouxe as imagens das câmeras em que uma odontóloga abatia vários motoqueiros, trabalhadores de entrega, como se fossem peças de um boliche. Um deles morreu, outro ficou gravemente ferido.
Os demais trabalhadores tiveram as motos destruídas (de onde tiravam o seu sustento). É difícil acreditar nesse país, quando uma pessoa branca, com um certo poder econômico, protagoniza uma cena dessas tão violenta, com testemunhas, com imagens que comprovam a veracidade dos fatos, é presa em flagrante e vai dormir no conforto de seu lar. Enquanto muitas pessoas negras vão para os presídios sendo inocentes.
Faz tempo que o Brasil é distópico. Embora saiba que o país não seja só isso. Consome uma certa energia psíquica viver nessa gangorra que se tornou o país. Fico catando o bem que restou, como quem debulha feijão-verde. Na paciência. E observo que muita gente está meio assim também procurando o que é bom e possível fazer e tecer para lidar com esse fundo de poço.
Observo alguns plantando, cuidando da terra, decidindo ir para o meio do mato. Outras pessoas somando esforços para fazer chegar comida na mesa das pessoas. E muita gente indo as ruas. Amigas escrevendo, pintando, tocando um instrumento, reformando seu espaço de dentro, pegando as horas e criando. Criar, um antídoto possível.
Vejo as mulheres trabalhadoras se desdobrando para manter seus filhos e filhas no ensino remoto, se virando em mil, acreditando nesse possível amanhã para seus descendentes. E por vezes tenho o sonho ingênuo onde vejo as mães das crianças desaparecidas em Belford Roxo, reencontrando e abraçando seus filhos.
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