É estranho celebrar aniversário num tempo pandêmico. Nesses últimos dois anos foi assim, anoitecer e amanhecer agradecendo por estar viva, embora em alguns momentos cercada de tristeza e temor. Nesses tempos duros há muitas pessoas amadas que anoiteceram e não amanheceram. Nunca fui apoteótica em aniversários. A discrição das datas particulares sempre foi algo que fez bem. Sou de lembrar as datas, e anotar para não ser traída pela memória. Gosto da felicidade causada pela lembrança afetuosa das pessoas mais amadas, as mais cotidianas. Como acolho com imensa alegria a ciranda ampliada das pessoas que chegam com suas bendições.
Sentir-se bendita. Abençoar. Alguns dias atrás escutei Elisa Locon, liderança indígena mapuche ao falar sobre a cosmovisão andina, e a relevância da palavra nas culturas indígenas. Afirmando que o desenvolvimento humano não deve ultrapassar a natureza, nem destruí-la. Sua fala mostra a centralidade das histórias que se transmitem através das palavras. Elisa arremata o coração da gente falando de coisas simples e profundas, complexas e filosóficas.
Na cultura indígena a palavra é um dispositivo que permite criar o mundo. Criar a realidade. Com a palavra se pode fazer a paz. E com as palavras se pode construir a guerra. A palavra é muito importante como o respeito que se deve ter a elas. Homens e mulheres, segundo Elisa, têm a responsabilidade de cuidar da palavra, da natureza, e cuidar-se entre si. Embora muitos de nós saibamos de tudo que Elisa Locon diz com tanta força, esse modelo de “desenvolvimento” desumano nos afasta cotidianamente dessa experiência vital de ser e estar.
Essa ideia de tempo humano, de viver os ciclos, de celebrar os anos tem esse poder para movimentar as emoções da gente. Com a pandemia, a visão de somar anos de certo modo se modificou um pouco. A vida se tornou mais urgente ao mesmo tempo com menos pressa. Há tempos que tudo em nós precisa desacelerar. Quando vejo as notícias sobre mudanças climáticas por vezes imagino o Titanic querendo frear para não bater nos icebergs. Como conter tanto plástico, embalagens descartáveis, gases, desmatamento, poluição? Fico fazendo do “Sal da Terra” de Beto Guedes um mantra: “Vamos precisar de todo mundo, um mais um é sempre mais que dois… Terra és o mais bonito dos Planetas…”
Celebrar mais um ciclo, poder estar em um novo, tocando a invisibilidade da alma. Tomando café. Meu filho, quando criança, se referia a “mildelesas”, para falar miudezas. Eu hoje me sinto assim, buscando as “mildelesas” da vida, como seu Manuel de Barros, um dos meus profetas do tempo presente.
Outro dia, em pleno aniversário me mandam mensagem pela sucursal das perturbações (que em parte são os aplicativos de troca de mensagens), falando para ir no sistema de informação rever dados. Sistemas esses que tomam parte significativa da vida das pessoas. Corroem suas visões literalmente. Mas são um vetor de consumação da energia vital.
Vivendo os rituais de passagem de mais um ano de vida. Adorei pausar, acolher todo amor nas palavras, nas bendições, no aconchego, no riso. Parar para olhar os peixes, poder me autorizar a parar tudo para ir olhar os peixes por muito tempo. Observar suas cores, o movimento deles numa piscina natural, sentir o movimento das águas, com a maré enchendo. A mesma maré que iria colocá-los de volta às profundezes.
Olhar o céu estourando azul, e tecendo degradés ao pôr do sol, estar num manguezal. Tecer com as palavras silenciosas a memória de todas as pessoas amadas que partiram, tocando adiante o fio da vida, tênue. Ser fiandeira. Lembrar da expressão grega Logos, palavra. Viver na cultura indígena outros experiências de significação da vida, outros argumentos, uma outra racionalidade.
Viver talvez seja em parte o não entendimento das coisas. Por outro lado o desejo é uma certa urgência pela vida. Quando a gente faz aniversário se revisita um pouco. Percebe uma certa diferença na atmosfera. E pode também se transmutar em gratidão.
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