Storytelling da violência contra as mulheres

Nesse domingo antes de dormir vi uma mais uma narrativa dos horrores. Não era ficção, é a vida real repetindo a culminância de um padrão cultural responsável pelo extermínio das mulheres. As imagens já de certo modo conhecidas do grande público mostravam uma mulher paraibana sendo espancada na frente de um recém-nascido. Inúmeras vezes e de forma brutal, e sem condições de se defender. Aquele tipo de cena, infelizmente, vi inúmeras vezes na TV, e de forma viralizada nas redes sociais mais recentemente.

Certa vez, andando nas ruas vejo de sobressalto uma mulher aos gritos e um homem a espancando, dando murros e pontapés. Paro em frete a casa da mulher, ela consegue abrir o portão, a briga continua na calçada. Com medo, grito e peço para que o agressor não faça aquilo, chamo pelos vizinhos que nessa hora são telespectadores a olhar pelas frestas das janelas, por seus portões. Tento pedir calma, as crianças choram. E só me resta ir em direção a um Orelhão (telefone público) próximo telefonar para a polícia e desorientada com tudo tentar explicar a localização da rua. Nesse tempo o agressor foge numa moto e a mulher tenta se recompor e vai acudir as crianças. Entra, e fecha o portão da casa, e segue para dentro com as crianças aos prantos.

Do lado de fora do portão, na rua, eu me sinto internamente trêmula e procuro me acalmar. Depois de calma, vejo que a vizinhança ainda observa, e eu aproveito a energia tumultuada daquele momento e reclamo da vizinhança pelo comportamento omisso diante da violência sofrida pela vizinha, uma mulher. Sigo meu caminho angustiada e marcada por essa cena que não foi a primeira nem a última, e reflete um problema estrutural e sistêmico que é o padrão cultural voltado à aniquilação das mulheres em nossa sociedade. O ano era 1995.

O problema é muito mais antigo e se sustenta no conservadorismo, hipocrisia social, na construção, enraizamento e reprodução de valores patriarcais, se dissemina por meio do discurso religioso ao longo da história e está impregnado nas instituições e cultura, é estrutural. Se por um lado não tem o menor pudor de se manifestar, por outro vai de forma sorrateira e sutil sendo nutrido pela indústria da cultura e pelo sistema “educativo”.

Antes mesmo da pandemia pelo coronavírus, já havia uma explosão, uma curva crescente da violência doméstica e sexual contra mulheres e do feminicídio. Com a pandemia, os indicadores jogam na cara da gente o sangue derramado das mulheres, seu sofrimento, e toda desestabilização da vida social que decorre da violação de nossos direitos provocada pela prática constante da misoginia, que tem muitas faces. O ano passado o país registrou mais de 105 mil denúncias de violência contra mulheres. No triste estágio que nos encontramos não é só estatística que precisamos, é necessário um Estado que nos proteja, uma sociedade que se reveja em seus “valores” e crenças, e políticas públicas de reparação aos danos causados às mulheres.

A cultura digital contemporânea também não pode ser parte da ritualização da violência contra mulheres a partir de uma lógica empreendedora, de engajamento e de consolidação de uma economia da violência. As redes sociais, sobretudo as empresas, grandes corporações de mídia digital, têm sim que encontrar maneiras de enfrentamento e de trazer respostas às diferentes formas de violação de direitos. Com as mídias sociais a figura do (a) influencer possibilita meios de autopromoção. Essa dinâmica em que os sujeitos sociais realizam, em parceria com empresas, um processo de “comoditização” de seu ser, deve ser visto com muito cuidado. Sobretudo quando o estilo de vida se ancora na violência, em especial contra mulheres, negros(pretas) e pobres. Sujeitos vulneráveis socialmente.

O engajamento como uma forma de rentabilidade constrói um sentido de autoridade aos indivíduos que passam a conduzir seu cotidiano a partir de uma prática persuasiva poderosa e por muitas vezes enganosa. ´

É preciso entender e enfrentar as fachadas construídas no ambiente das redes e suas relações com a cultura da violência, tendo em vista os impactos negativos causados na vida social. Ao se valer da lucratividade do marketing de influência as empresas têm sim responsabilidade, podem e devem por certo construir mecanismos de regulação capazes de agir frente a violência contra às mulheres e diferentes formas de violação.

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