Eu tomei emprestado aqui o título do livro da querida escritora Clotilde Tavares. Primeiro porque concluí a leitura dele a semana que passou. Eu demoro lendo um livro, e ainda tenho o costume de ler alguns títulos num mesmo período. E se algo na leitura me abala, afeta consciente ou inconscientemente eu paro. E demoro uns dias pensando no acontecimento que o livro trouxe. Isso pode também acontecer lendo livros técnicos da minha área. Só que é mais comum na literatura. Esse ano eu fiquei aturdida com a leitura do conto “Uma questão temporária”, que integra o livro “Intérprete dos Males” da escritora Jhumpa Lahiri. Precisei de muitos dias, depois que acabei a leitura, para me recompor ou refazer. E ainda há dias que o conto me retorna, tamanha honestidade, precisão, delicadeza e força da história narrada.
Com o livro “De repente a vida acaba”, de Clotilde Tavares, as trajetórias cruzadas das personagens Maria Eulina e Alice me fizeram percorrer algumas mulheres que encontrei pelo caminho. Sempre estive cercada por muitas mulheres, tão diferentes umas das outras. Até mesmo dentro de uma mesma casa, pareciam alienígenas, cada uma pertencente a um planeta diferente. Na intimidade, encontrar a interseccionalidade dessas mulheres foi um percurso bem delicado, num território tênue das mais diferentes variáveis, inclusive a geracional.
Ao ser apresentada as mulheres de Clotilde eu fiquei pensando sobre mulheres que conheço de minha geração. E me surpreendeu saber tão pouco. A gente nasceu no período de ditadura militar, mas muitos pais e mães preferiram nos blindar. Quer fosse por medo, pelo silenciamento, ou ignorância sobre seu tempo histórico, muitas de nós atravessamos os anos finais dos anos de chumbo, olhando para a história do país como se estivéssemos mirando por um retrovisor de algum carro. A televisão pelo menos nos deu um espelho embaçado em que pudemos ver o movimento pelas Diretas Já.
Ao som de Coração de Estudante, algumas meninas de minha geração, ainda puderam, na escola, encontrar chaves para interpretar o social, num tempo em transição numa cidade de interior, em que muitas experiências culturais se hibridizavam de forma mais intensa. Sempre me surpreendo ao olhar para trás e pensar dos textos que pude ler em sala de aula sobre relações de gênero e divisão sexual do trabalho, autoritarismo, racismo… Claro que eles não vinham com essas conceitualizações, tudo estava entranhado nas narrativas, nos títulos, em personagens e situações. De maneira muito inteligente se trabalhava com o não dito, e tudo mais semantizava nossas relações sociais.
Pensando sobre a presença contestadora das mulheres jovens dos anos 60, 70, fico a pensar se as mulheres jovens de minha geração, que atingiu a juventude nos anos 1990 tenha sido um hiato. Definitivamente não sei. Acompanhei muitas de nós buscando uma vida melhor, uma liberdade, um teto todo seu, um corpo que lhes pertença, liberdades políticas, civis e sexuais a partir do direito à educação. Hoje vejo algumas de nós doutoras, e por vezes cansadas. E nunca pensei que fôssemos ser tão responsáveis. Observando as mulheres do livro “De repente a vida acaba”, tão caleidoscópicas, desejei mesmo que muitas garotas que conheço fossem menos racionais.
Parece que o relógio das mulheres de minha geração girou os ponteiros para que nós déssemos talvez conta de muitas expectativas lançadas e no percurso de ser mulher emancipada, como se falava nos anos 1990, a gente se estrepou bastante, e se refez todas as vezes. Não tinha receita, era quebrando a cara e seguindo. Foi como se o tempo despisse nossas ingenuidades, não sem dor, muitas vezes até sem reparação.
Certamente não queimamos sutiãs, a gente meio que nem fez questão mesmo de usar. Mas a gente dançou muito, e no bailar fomos coreografando nossas subversões. Pegar o transporte só de ida da casa da mãe, do pai, ou dos pais, e sozinha. E não embarcar num casamento por volta dos vinte anos foi uma proeza possível numa cultura medíocre com as mulheres.
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