Sementes de papel

Tento chegar em 2021, me desvencilhar um pouco do resquício do cordão umbilical de 2020. Mas tenho a sensação de que enquanto a vacina não chegar para todos e todas haverá sempre Covid-19 à espreita. E por isso sigo construindo umas rotas de fuga. Final do ano, recebi da TAG Experiências Literárias, a primeira edição da curadoria literária de 2021. Como é de costume, a TAG sempre manda um mimo. E o do primeiro mês do ano foi um planner bem lindo e homenageando autoras revolucionárias. Algumas penso, porque acredito que pelo mundo a fora tá cheio dessas autoras.

Além disso, trouxe na edição um tabuleiro para estimular o hábito de leitura, para que em 21 dias pudéssemos ler toda a publicação. Fiquei muito entusiasmada, e comecei a ler “A Mulher Ruiva”, do autor turco Orhan Pamuk, logo dia 01. E conclui a leitura dia nesse último dia 08. Fui fisgada, eu que sou muito lenta para ler. Minha relação com a leitura é de uma traça que fica escondida e vai comendo o livro devagar. Eu me acostumei. Não me cobro tanto. Leio várias coisas ao mesmo tempo, nesse tempo indivisível da leitura. Agora por exemplo, já estou entrando no universo da Toni Morrison, com “O olho mais azul”, e de mãos dadas como “Phelipe Caldas”, em “Quando a saudade me visita”. São muitas as emoções.

É uma pena mesmo que o Século XXI testemunhe a diminuição profunda do hábito de leitura. Aquela leitura visceral, diálogo entre mundos, culturas e gerações. Lentamente sendo substituída por cliques. Não sou neurologista. Mas toda vez que penso sobre o assunto acho que quando desaparece o ato de ler a gente vai sumindo aos poucos e perdendo a memória do que fomos, do que somos…

Durante a adolescência meu estímulo à leitura foram os livros da escola, dos irmãos e irmã mais velhos. E ainda as publicações do Circulo do Livro que me foram emprestadas pelo meu amigo Eripetson Lucena. Assim a gente lia muitos clássicos, best sellers, diferentes gêneros. Assim conheci Stephen King, que tornou menos tediosas algumas das tardes de calor no sertão ao ler os contos de “As vezes eles voltam”. Fiquei assustada por semanas. E, dentro de casa, chamando por mainha toda vez que o vento balançava alguma cortina. Passados tantos anos, ainda dou imensas gargalhadas quando lembro das minhas marmotas toda vez que terminava de ler algum conto de terror. Nesse período ainda comecei a frequentar a biblioteca de minha escola, o CEPA, que era linda, e tinha uma vista inesquecível para a Serra do Teixeira. Foi lá que li alguns livros do Malba Tahan, que pensava, como muita gente, ser uma mulher. Já que não havia nenhuma foto nem descrição do autor na edição que estava lendo.

Frequentei ainda a biblioteca situada na antiga Praça da Pelota (adoro esse nome, que faz referência à aparência das luminárias de lá). Ali, nas tardes de calor, rolava muita pesquisa. O ensino médio estava em curso. E além de realizar os levantamentos para os trabalhos escolares, vez por outra se paquerava (quando era só olhar mesmo, e no máximo sorrir).

Minha turma na Universidade também gostava muito da Biblioteca Central. E as idas por lá eram frequentes. A gente pesquisava, lia, fofocava, tirava cochilo, também paquerava, e se estudava muito jornalismo, fazendo as leituras necessárias da área. Tinha surpresas ótimas a encontrar todo tipo de livro, dos técnicos de outros campos de conhecimento à literatura de diferentes países, às coleções especiais. E ainda se deliciava com a Pinacoteca, conhecendo artistas do Brasil. E a cereja do bolo eram as sessões do cineclube de lá, coordenadas por Peter Krometsek e Patrício Araújo Duarte. Vi filmes incríveis lá, como “Tomates Verdes Fritos”.

Espero que esses espaços não desapareçam da vida das pessoas. Além dos espaços físicos, as pessoas precisam também de tempo, acesso aos livros e estímulo para ler. Eu sempre penso em Carolina Maria de Jesus e na sua autodeterminação, poética e força para transformar seu cotidiano. Penso por vezes nos homens e mulheres que salvam os livros dos lixos dos prédios e dos depósitos de lixo nas grandes cidades. Pessoas que transformar a si mesmos e a vida de tantas pessoas pela leitura.

Que bom perceber que livro não é algo descartável, que é semente que pode fazer brotar muita vida.

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