Aos 45 anos pensei me presentear com uma escrivaninha. Aprendi a escrever com Dona Luzia, na Travessa Padre Anchieta, na cidade de Patos. Não foi um processo doloroso, embora a professora tivesse palmatória, e minha caligrafia não fosse boa, era quase incompreensível. Quando olho para a letra escrita de hoje, quase não acredito que comecei aos garranchos. E me arrastei com eles até a adolescência. Não sabia o que era escrita, demorei muito para entender. Mas por volta dos 12 para 13 anos li nos livros de meus irmãos mais velhos uma crônica do Rubem Braga, chamada Meu ideal seria escrever. O sentimento ao ler aquele texto foi de cumplicidade, era quase como se fosse revelado algo sobre mim, naquelas linhas. Guardei. Alguns anos depois, quando me defrontei com a questão de quem me tornaria, fui tomada por uma convicção de que a escrita era parte de minha personalidade. Embora não tivesse a menor idéia do que era mesmo viver para escrever e escrever para dar sentido à Vida, ao mundo.
Decidi ser jornalista, porque pra mim, menina do interior, ser escritora estava distante, escritores e escritoras eram deuses distantes, imateriais, iconográficos. Na minha vida inteira nunca havia conhecido um pessoalmente. Décadas depois descobri que onde morava havia vários escritores. A literatura chegou à minha vida pelos livros didáticos dos irmãos mais velhos, pelos empréstimos de um amigo que tinha uma assinatura do Circulo do Livro, por um sebo existente em frente ao Cinema São Francisco, na Rua do Prado, onde podia ter acesso e folhear gibis. Nos anos 1980 os livros não eram fartos, nem supérfluos, numa cidadezinha eram de difícil acesso.
Assim, o jornalismo como carreira de escrita, me dava muitas possibilidades, sobretudo a de ganhar mundo. Uma credencial como jornalista era para mim quase compatível a um passaporte diplomático. Pensava que ser jornalista poderia me levar a qualquer lugar com o compromisso nobre de bem informar.
Passaram-se os anos, me fiz jornalista, entrei em diversos espaços, e ainda permaneço na Caverna da Escrita, um dos lugares mais difíceis de se estar. É um mundo dentro de camadas, de vozes que em momentos só você escuta. Por vezes um lugar escuro e de silêncio profundo, sem eco, sem Luz. Vazio. É por vezes um pensar alto impronunciável. E de sentimentos latentes e escorregadios.
Quando concluí meu doutorado enterrei todas as palavras que me habitavam. Permaneci num luto por alguns anos. Uma experiência não compartilhada até a chegada da Escrivaninha. Ainda que escrevendo por força de exigências de trabalho o sentido havia partido. E fui tomada por um sentimento simplesmente de incapacidade. De viver todas as palavras e textos inteiros somente por dentro, do lado avesso do espelho.
A Escrivaninha demorou a chegar, foi lapidada pelo tempo. Quando eu toco na sua madeira agradeço ao Deus da Vida pelas árvores e sei um dia que meu corpo, ao pó, restituirá a Terra à parte que me foi dada. Vejo ainda através da madeira as mãos dos dois marceneiros que a fizeram lembrando com carinho de seus últimos momentos lapidando cada canto do móvel.
Nesse micro lugar desejado estão simbolicamente as vozes amadas que de uma forma ou de outra me faziam relembrar que “Meu ideal seria escrever”. Esses itinerários de escrita atravessados por desafios tantos e momentos tolos. Escrita de mulher. Nesse território de narrativa feminina fui aos poucos entendendo o que isso significava, sempre surpresa com a genialidade, angústia e perseverança de Clarice Lispector, e escritoras e cientistas mulheres que dizem sua própria palavra. Recordo ainda as mulheres ancestrais cujo direito da escrita foi negado, compreendendo que pela tessitura de suas memórias e intuição repassadas pela oralidade, cantos, rezas, crochês, bordados, retalhos, chás, muitas de suas histórias estão presentes no cotidiano, escritos poderosos constituídos sem a tecnologia do lápis e papel. Benditos ecos femininos cujas palavras se manifestam sob diferentes formas.
Não sei como vou ser depois da Escrivaninha, apenas fiz questão de carregar seus espaços com símbolos importantes para mim: a minha bíblia que traz histórias incríveis de muitos gêneros e parece um livro muito vivo. Todos os contos e crônicas da Clarice Lispector, que me chamou para si através de Água Viva, primeiro livro que lí, e assombrada descobri que era possível inventar e dizer nesse mundo sua própria palavra, e que poderia ser compreendida mesmo se referindo a um universo ao mesmo tempo ímpar, particular, mas real, surreal e verdadeiro. Trouxe ainda a caneca com formato de ancestral indígena feita na Porcelana São Paulo, e que era vendida no Festival do Guaraná, festa que acontecia entre final dos anos 1970 e início de 1980, por ser um artefato da minha infância. E porque até hoje acho engraçado o fato de ter existido uma festa em que a atração principal era guaraná. Era divertida. Na caneca estão canetas e um pega-varetas. Estão presentes ainda as deusas de cerâmica que ganhei de um amigo querido, uma coruja de madeira que representa as mulheres sábias, algumas delas partiram todavia permanecem povoando meus regimes diurno e noturno. Os livros na Escrivaninha são rotativos. Na inauguração estavam Mia Couto, Eliane Brum, Clarice Pinkola Estés ( que vai ser presença permanente), John Hersey, Gerard de Cortanze e Márcia Tiburi.
Por fim estão meu castiçal pequeno e discreto que trouxe de minha primeira viagem ao Chile, e um tinteiro em formato de caranguejo, encontrado num antiquário da antiga Rua da Floresta, em Campina Grande, e que me lembra o quanto gosto das Águas e da Lua. Ah, e como não poderia esquecer, meu quadro feito de uma foto monocromática da Frida Khalo, trazida da Casa Azul. Embora não goste muito dessa saturação mercantil de imagens pop da Frida vendidas pela indústria do empoderamento e pelo feminismo de auto-ajuda. A escolha dessa imagem em particular lembra o momento em que estive em Coyoacán com as duas pessoas mais importantes de minha vida. Essas imagens, símbolos e memórias são testemunhas do nascedouro de palavras ora não ditas.
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