Essa semana eu anotei uma frase num papel para não esquecer do que escrever aqui. Aí perdi o papel. Mas eu sei do que quero falar, porque dias passados voltei a lembrança dos objetos da casa de mainha. Recordei de um tempo onde os objetos atravessavam gerações. Eu que cresci num mundo marcado pela cultura do descartável, que glorificava tudo que fosse novo, estava também cercada de alguns objetos que haviam atravessado anos a fio, décadas talvez. A exemplo da cama, guarda-roupa e penteadeira de mainha, lindos, que desde a infância à vida adulta estavam lá. Lembro com desgosto de uma caçarola de catar arroz que coloquei fora de casa, por puro capricho, sem me dar conta de que minha mãe tinha apego sentimental ao seu utensílio, que fora trazido por sua irmã querida. A cena do olhar da minha mãe diante do vazio que lhe causei nunca pude esquecer.
Certa vez, quando visitei a casa da escritora Maria Gabriela Llansol, vi um lindo cartaz de divulgação de uma Jornada Llansoliana de Sintra, cujo título era “A Luminosa Vida dos Objetos” e fiquei muito impressionada. Por me dar conta da cadeia de sentidos e histórias que envolvem os objetos inanimados. Entrar na intimidade da casa da escritora, acolhida por um de seus estudiosos, o pesquisador João Barrento, foi uma experiência que me marcou muito. Porque tudo que estava lá dentro tecia um poderoso fio narrativo da cotidianidade da escritora. Cheguei a fazer algumas fotos por me identificar bastante com seus objetos, mas sobretudo por perceber a poética presente nas escolhas de Llansol. E de como todos os seus papéis, escritos, vasos, bonecas, quadros, bules, davam conta de seus universos de pertencimento. E a senti ali, uma casa repleta de ânima.
Penso que os objetos não nos atribuem valor. Não nos dão sentido, apenas costuramos os significados das coisas que escolhemos para fazer parte do nosso convívio. Um quadro, uma recordação de viagem, uma obra de arte, um cromo, uma fotografia pendurada na parede, um ímã de geladeira, flores pela casa, um pote, as canecas… Não daria para enumerar aqui tudo que a gente vai pegando como parte da nossa narrativa particular de espacialidade. Durante um bom tempo estive na casa de minha amiga Agostinha (Marion Vieira de Mello). Eu entrava naquela Casa Poema, na rua Monte Castelo, em Mandacaru, na maior felicidade do mundo. Por encontrar com ela, e fazer parte daquele universo particular. A luminosidade dos objetos de Agostinha estava nos gestos dela e Letícia de tecerem tanta poesia dentro de sua casa. Ali eu me sentia num casulo, num jardim secreto, aquela casa era para mim um cosmo. Muito feminino. Eu não sabia para onde olhar naquela imensidão de coisas lindas: as orquídeas, os livros, os quadros, as grades com desenhos de tulipas, a coleção de presépios, os banquinhos que sentávamos e conversávamos ao entardecer. Com a partida da Agostinha, ver a casa sem ela, e desfeita, foi como me sentir uma rosa totalmente despetalada. Sentindo a dor de ver cair cada pétala.
Eu, como Agostinha, Llansol, Pablo Neruda, Frida Khalo, minha querida amiga Ghislaine Duque, e tantas outras pessoas que conheço, caminham com a luminosidade de seus objetos. Eu sinto saudades de uma agenda, de 1994, decorada por mim. Com fragmentos de minha memória que acabei deixando voar por aí, rasgando seus papéis. O que falar dos meus negativos, das memórias diluídas das andanças…? Eu tenho sede de memória, como tenho fome de alma.
Dos papéis de carta que colecionei, a todos deixei ir na direção das pessoas amadas. Do meu inventário me acompanham alguns livros. Alguns com questões que não fariam muito sentido na atualidade. Outros riscados com minhas anotações. Sim, sou das que riscam livros, melhorei sob alguns aspectos, mas acho bom demais para deixar. Já parei de rabiscar flores. Ah, e os cds? E os discos? E aquela fita gravada com canções para quando seu filho chegar? Aí já se passaram quase 18 anos. E a entrada do primeiro show do Oswaldo Montenegro e do A-ha? Seguem comigo como pérolas. Assim como a bruxinha de cerâmica trazida da Bella Vista, e o estandarte com artefatos e pinturas indígenas que empunho como se estivesse chegado à Lua com ele.
O violão segue junto. E aí eu fico me perguntando a coisa mais antiga que carrego comigo. Eu tive uma manta, a quem eu chamava de jamanta. Ela me ajudou a atravessar os invernos em Campina Grande, nas noites mais solitárias, fazendo tudo ficar mais aconchegante. Eu carrego comigo um caracol que achei em El Quisco, que fiz dele um colar, depois que meu filho, criança, brincou com ele o quanto pôde. Ele carrega as memórias lindas da minha presença no Pacífico Sul, das tardes observando as gaivotas, os cactos imensos, das caminhadas pisando em seu solo arenoso.
Não são muitos os objetos luminosos. Só que falam tão intensamente ao meu coração que acho que quando partir vão falar também de mim, do que fui, daquilo que gostei, das terras por onde pisei, dos mares e marés em que naveguei.
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